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Por Carolina Freitas

Há tempos ensaio escrever um texto para o Adelaides sobre a relação que levamos com nosso corpo, especialmente no que concerne aos transtornos alimentares: anorexia e compulsão. Já sofri o problema nas duas pontas e coleciono experiências sobre o quanto viver nesses extremos é doloroso. E histórias sobre como as pessoas sabem ser cruéis tanto com uma menina claramente neurótica por dietas quanto com uma adulta acima do peso.

Vinha adiando esse texto em busca de um formato ideal para tratar do assunto. Até que hoje me deparei na internet com o vídeo de uma apresentadora de uma rede de TV de Wisconsin, nos Estados Unidos, chamada Jennifer Livingston.


No ar, ela responde à carta mal criada de um telespectador. Em resumo, o homem a acusa de ser uma má influência para os jovens, uma vez que está na TV mesmo tendo feito a “escolha de ser obesa”. Jennifer lê a mensagem do telespectador, com todas as vírgulas e ênfases. Ao final, faz um discurso absolutamente franco sobre o que nós, pessoas acima do peso, pensamos a respeito daqueles que nos apontam o dedo.

“Você pode me chamar de gorda. Mas você acha que eu não sei disso? Você não sabe nada sobre mim. Eu sou muito mais que um tamanho de manequim”, afirma uma impecável Jennifer. Ela diz que pessoas como o homem que escreveu a carta são as que servem de mau exemplo às crianças. Os pequenos ouvem esse tipo de coisa, chegam à escola e xingam de gordos seus colegas.

Ser gordo não é uma opção. Há uma série de buracos emocionais que levam uma pessoa a comer loucamente e se afundar num sofá. Precisei de quatro anos de terapia para identificar as dores que me levavam a, primeiro, não comer nada e, depois, a comer tudo. O motor dos dois transtornos é basicamente o mesmo. Depois de encontrar as feridas, comecei a aprender como curá-las. E, ainda assim, com tudo isso compreendido, é uma árdua tarefa reverter os ponteiros da balança. É um exercício diário de disciplina, paciência e autoconfiança.

Pense agora em passar por todo esse imbróglio interno e, ao entrar em uma loja de grife, ser recebida da seguinte forma depois de pedir informações a uma vendedora sobre uma peça da vitrine: um longo olhar dos pés a cabeça – com pausas demoradas nos quadris, na barriga e nos braços – e a pergunta: “É para presente?” Invariavelmente choro quando lembro desse episódio. Não foi o único, mas foi um dos mais doloridos.

Passamos por isso todos os dias. Se não é uma palavra dura, é um olhar. Se não é um olhar, é aquele emprego dos sonhos que escapa porque você não passou tão boa impressão quanto quem cabe numa calça 38. É a vida, esfregando na sua cara a sua “escolha de ser obesa”.

Pois esfreguemos de volta na cara de quem nos olha feio: somos gordos sim, mas somos muito mais do que gordos. Somos namorados exemplares, somos pais dedicados, somos profissionais brilhantes, somos ótimos companheiros de viagem, somos cantores talentosos, somos geniais contadores de causos, somos, muitas vezes, cozinheiros de mão cheia.

E não somos tudo isso nem apesar de nem porque somos gordos. Somos o que somos pelo mesmo motivo que os magros: somos humanos. Seres feitos de carne, osso e infinitos anseios de aceitação, compreensão e felicidade. Talvez seja difícil de entender. Talvez dê trabalho demais. Bom, vá em frente, me chame de gorda.

3 pensamentos em “Vá em frente, me chame de gorda

  1. Apesar de matérias de revistas serem geralmente superficiais sobre um assunto, a Veja desta semana, estampando na capa o desafio do Ronaldão no Fantástico, discorre sobre um lado mais científico sobre o tema. Muito bom, e muito esclarecedor. Vale a pena ler. Ótimo texto, Carol!

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